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Transformação de cooperativas: dois lados de uma mesma moeda

Por Paulo R. Stöberl, Advogado em Arauz & Advogados


Quando se questiona a possibilidade da transformação do tipo societário “cooperativa” para outro, especialmente "empresária”, me vem à mente qual seria a motivação dos cooperados para essa alteração tão profunda. É sem dúvida uma mudança que transcende o âmbito societário ou econômico, atingindo a dimensão da vontade fundacional do grupo que só se explica com a transmutação do tipo caracterizado pelo membro da sociedade.


Com essa linha de raciocínio inauguro uma análise mais ampla, além da interpretação do alcance do texto do inciso IV, do artigo 63, da lei cooperativista, frente ao artigo 1.113, do Código Civil. Apesar, no entanto, de entender que esse comando é suficientemente claro para desautorizar tal alteração, sem causar a dissolução da cooperativa, (extinção da pessoa jurídica), mas abordarei esta questão, mais abaixo.


Por agora, parto de uma compreensão dos autores clássicos[1] de cooperativismo, da qual se pode resumir que a cooperativa é o resultado da união das atividades econômicas dos cooperados, envoltas por uma estrutura societária[2], que existe para ligá-las ao mercado e assim incrementá-las. Portanto, a razão de criação da sociedade cooperativa é diametralmente oposta à ideia de sociedade empresária, que se fundamenta na exploração de uma atividade econômica, (Bulgarelli (1965 e 1967).


Dito de outra forma, a natureza (tipologia) do sócio cooperado (dono/usuário/fornecedor)[3] não se coaduna à natureza do sócio cotista ou acionista, que é um investidor.


A empresa atua, a cooperativa presta serviços. Uma possui atividade própria, outra atividade diretamente correlacionada (vinculada) às atividades praticadas pelos cooperados, (Franke, 1978, p. 16)[4]. Eis a razão pela qual o legislador classificou a cooperativa como espécie de sociedade simples[5], no parágrafo único do artigo 982, (CCB, 2002).


A transformação, portanto, atinge a qualidade do associado, transmutando-o de unidade econômica autônoma em investidor, denotando que foram atingidos os objetivos predeterminados da sociedade e que esta não lhes prestará mais serviços e sim praticará uma atividade própria (empresária).


Além disto, há a questão estrutural[6] de que o patrimônio da cooperativa é destinado a prestar serviços aos cooperados (art.4º, 7º, 21, III e 79, da Lei 5.764), perfazendo com que a existência desse patrimônio para uso em copropriedade, seja o sentido da constituição e continuidade da cooperativa, uma vez que o patrimônio é o lastro para que a sociedade sirva ao sócio utente.


Decorre disso, que esse lastro, materializado pelo patrimônio, está a serviço dos cooperados presentes e futuros, foi e será constituído com o único objetivo de concretizar a finalidade societária de incrementar as atividades econômicas do cooperado - esta é a razão que explica a existência do comando que determina, na dissolução[7] da cooperativa, que o patrimônio, bem como os fundos sociais indivisíveis legais, serão todos encaminhados ao Tesouro Nacional - (art. 68, IV, da lei cooperativista).


Entendo, portanto, que o efeito da transformação da cooperativa, em empresa, não instaura a possibilidade da divisão do patrimônio, apenas pode criar a falsa ideia de que sua divisibilidade e apropriação serão materializadas pela propriedade das quotas-partes, como ocorre nas empresas.


Certo é que se houver a transformação, as quotas-partes assumem outro sentido, i.e., o de poder de voto e de percentual de resultados, não mais advindos da participação[8] do membro da sociedade na atividade desta, mas sim, advindos de uma atividade própria (empresarial) da sociedade. Verdadeiramente os cooperados transformam-se em investidores, cuja operacionalização com a sociedade não é mais uma relação societária (art.79) e sim comercial de compra ou venda.


Ora, se a transformação altera (i) a tipologia do sócio presente; (ii) o sentido total da sociedade, mas não (iii) torna divisível o patrimônio e fundos aos cooperados[9] o que sobra da pessoa jurídica a se aproveitar pela nova sociedade? Seu CNPJ?


Examinando a questão tão somente no campo do direito societário, com a devida vênia, a transformação (alteração da forma jurídica) na sociedade cooperativa (inciso IV, do art. 63), deve ser analisada de forma sistêmica.


Por exemplo, em relação às demais seis formas de dissolução da pessoa jurídica que o legislador de 1971 erigiu. Será que apenas a transformação, (inciso IV), se refere tão somente a dissolução da forma societária e não da pessoa jurídica? Será portanto que essa sétima hipótese foi mal colocada junto às demais seis causas de dissolução da pessoa jurídica? Apenas o inciso IV extingue a forma societária, mas não se dissolve a pessoa jurídica?


E como aplicar o artigo 1.093 do Código Civil que recepciona a natureza e forma próprias da cooperativa, conforme texto do artigo 4º da lei 5.764/71?


Em síntese, creio que a extinção da cooperativa, enquanto pessoa jurídica, é a consequência de sete hipóteses, inclusa a alteração de sua forma jurídica (transformação), haja vista que em todos estes sete casos do artigo 63 o seu “sentido de existência” deixa de existir.


Assim, peço vênia, pois diferentemente de algumas decisões do Poder Judiciário e alguns de meus colegas, por mais que eu examine a questão, não vejo como “ilógico e irracional” que a transformação do tipo cooperativa em empresária possa ter outro resultado que não “a morte compulsória da pessoa jurídica”. Afirmo isso com vistas na doutrina do cooperativismo e na própria Lei 5.764/71, construída sob aquele alicerce.


[1] Charles Gide (1933 e 1941), Fábio Luz Filho (1962), Diva B. Pinho (1966 e 1977), Waldírio Bulgarelli (1965, 1967 e 1998), Walmor Franke (1978), George Fauquet (1980), Valdick Moura (1986) entre outros. [2] No Brasil nem sempre a natureza societária foi atribuída de maneira inconteste às cooperativas, vide o Dec. nº 979/1903, Dec. nº 1637/1907 e o conjunto de normativo da década de 1930 que atribuía a natureza sindical à cooperativa, discussão finalizada pelo Dec-lei nº 581 de 1938. [3] Ver capítulo IV da obra de Walmor Franke (1978) quando aborda a dupla qualidade do associado. [4] Ver Princípio da Identidade com base na doutrina alemã principalmente nas obras de Harry Westermann (1951) e Hans Fischer (1951). [5] Nos dizeres de Assis Gonçalves (2010) a sociedade simples se caracteriza quando a prática da atividade econômica (profissão) é realizada pelo sócio, p.09. [6] Idêntico raciocínio se faz em relação aos fundos legais e obrigatórios, do art. 28 da ei 5.764/71. [7] A Resolução CNC nº 07/71 determina que a Liquidação se aplica a todas as formas de dissolução previstas no art. 63 da Lei 5.764/71. [8] Refiro-me a divisão de resultados por participação, inciso VII do art. 4º, da lei cooperativista e VII, do art. 1.094 do CCB. [9] Entendo que a construção do legislador da 5.764/71 disciplinou que se o patrimônio (construído pela cooperativa ao longo dos anos) não será mais utilizado para o cumprimento do objeto social e do objetivo social, (função societária fundamental), ele deve ser destinado ao Estado. Ora, se assim não o fosse ele bem poderia ser dividido entre os cooperados no final da Liquidação, como acontece nas outras sociedades, fato que foi vedado pelo texto do inciso IV, do art. 68. Não visualizo a hipótese que a transformação da cooperativa possibilite a divisão de patrimônio entre os sócios presentes. Mesmo porque, todos os cooperados que construíram o patrimônio da sociedade e já não pertencem mais a ela, só terão tido o papel de ajudar os atuais cooperados a dividirem, entre eles, esse mesmo patrimônio, pois por ocasião de suas saídas, eles não puderam levar seu quinhão.

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