Por Heloisa Führ Bonamigo, Advogada em Araúz & Advogados
Os contratos agrários são regulamentados pelo Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, e Decreto 59566/1966, que tratou especificamente da matéria, conhecido como o Regulamento dos Contratos Agrários, eis que delimitou normas específicas ao arrendamento e à parceria rural, bem como aos demais pactos que possam ter relação com o uso, gozo e posse temporária de área rural.
A legislação contratual agrária adotou um viés protecionistas aos direitos do possuidor (arrendatário ou parceiro produtor) ao considerá-lo hipossuficiente e incapaz de fazer prevalecer a sua vontade na contratação, sendo visto, por vezes, como um desconhecedor de seus direitos.[1]
Passados mais de 50 anos de vigência da legislação citada, o Brasil se transformou em um grande produtor, atraindo grandes investimentos e propiciando o nascimento de grandes empresas de agronegócio, sendo que esta alteração econômica transforma o produtor rural em empresário, ou seja, não é mais um desconhecedor de seus direitos.[2]
Recentemente, em análise da Medida Provisória nº 881, conhecida como Medida Provisória da Liberdade Econômica pelo Congresso, o relator, Deputado Jerônimo Goergen (PP/RS), surpreendeu ao propor o acréscimo ao § 10 ao art. 92 do Estatuto da Terra – Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, nos termos seguintes termos:
Art. 54. A Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa, nos termos desta Lei.
§ 10. Prevalece a autonomia privada nos contratos agrários, exceto quando uma das partes se enquadre no conceito de agricultor familiar e empreendedor familiar rural, conforme previsto o art. 3º da Lei
Não obstante a proposta tenha sido retirada do texto antes da aprovação de sua conversão em lei, evidencia-se o descompasso da atual legislação com os fatos sociais e econômicos atuais. Conforme ressaltou Pedro Amaral Salles “quem explora atualmente a terra não é mais, necessariamente, o ‘vulnerável’ da relação comercial rural”.[3]
O Decreto 59.566/66 e o Estatuto da Terra elencam inúmeras cláusulas obrigatórias no intuito de formar um sistema de proteção que elida a exploração das partes e promova a função social da propriedade pelo racional aproveitamento do solo.
Dentre as vantagens e direitos irrenunciáveis previstas destaca-se a que usualmente gera grande controvérsia quando interpretada ou executada pelo Judiciário. O art. 18 do regulamento estabelece que para o arrendamento o preço só pode ser ajustado em quantia, sendo vedado o ajuste em produto.
Verifica-se que a ratio da norma é a proteção do arrendatário, normalmente a parte mais frágil dessa relação, partindo da premissa que a variação do valor da mercadoria é, em regra, desfavorável ao arrendatário, retirando, portanto, um risco.[4]
A despeito da clareza da norma, verifica-se que, por vezes, as partes manifestamente e autonomamente afastam as cláusulas protetivas, tendo em vista os usos e costumes do ambiente negocial agropecuário, pensado em razão dos ciclos e custos dos produtos agrários.
O Superior Tribunal de Justiça adota há muito o mesmo posicionamento quanto à nulidade das cláusulas que violem a legislação, determinando tão somente o arbitramento do valor do arrendamento ou a revisão do contrato para adequação através de significativa intervenção judicial, tendo recentemente adotado posicionamento inovador ao verificar o comportamento contraditório da parte, quando prevalecerá o acordado por prevalência da tutela da confiança.
A Ministra Nancy Andrighi proferiu voto divergente no julgamento do Recurso Especial 16692763/MT[5], tornando-se relatora para o processo, no qual defendeu que entender pela inviabilidade do prosseguimento da execução premiaria o comportamento contraditório do recorrente, que durante mais de metade do período de vigência do contrato, adimpliu sua obrigação nos moldes acordado (entrega de produto). Concluiu que a violação à boa fé, no caso, prática de conduta contraditória, tem força para impedir a invalidade da pactuação da remuneração do arrendamento em quantidade fixa de produtos, uma vez que também constitui legítima expressão do interesse público, que se consubstancia tanto na tutela da confiança quanto na intolerância à prática de condutas maliciosas, torpes ou ardis.
Ainda que o Superior Tribunal não tenha se aprofundado na fundamentação do novo posicionamento os recursos contra a decisão, fundados na alegação de divergência com o entendimento anterior da corte, foram integralmente rejeitados, o que leva a crer que será mantido.
Trata-se de debate inovador que pondera, em síntese, sobre o confronto das normas de ordem pública disciplinadas no Estatuto da Terra e fundadas na função social da propriedade, e a tutela da confiança pela violação da boa fé fundada na função social do contrato.
[1] GODOY, Luciano de Souza. Uma visão dos contratos agrários à luz dos precedentes do superior tribunal de justiça. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de Medeiros. (Coord.). Aspectos polêmicos do Agronegócio: uma visão através do contencioso. São Paulo: Editora Castro Lopes, 2013. Pag. 377 [2] GODOY, Luciano de Souza. Op. Cit., Pg. 378. [3] SALLES, Pedro Amaral. Aspectos atuais do arrendamento rural: uma análise crítica. Revista do Advogado, São Paulo, n. 134, p. 132-141, jun 2017. P. 133 [4] NEVES, José Roberto de Castro. Op. Cit., Pág. 366 [5] REsp 1692763/MT, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/12/2018, DJe 19/12/2018
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