Por Bernardo Vianna, Advogado em Arauz & Advogados Associados
Nosso ordenamento jurídico, no que diz respeito ao financiamento rural, sofreu uma profunda transformação. No âmbito jurisprudencial, destaque para o precedente do Superior Tribunal de Justiça que assentou a possibilidade da Recuperação Judicial do produtor rural, tese firmada pela Quarta Turma no julgamento do Recurso Especial nº 1.800.032 – MT. Na seara legislativa, o destaque ficou por conta da lei nº 13.986, a chamada Lei do Agro.
Transcorridos alguns meses destes marcos do crédito agrícola no Brasil, esse novo ambiente jurídico e econômico exige, especialmente por parte dos agentes financiadores do agronegócio, agilidade na adequação às novas regras do jogo.
Nesse contexto, em que pese os números positivamente impressionantes do PIB do agronegócio brasileiro, não podemos fechar os olhos para uma realidade no mínimo preocupante e que põe em risco o sistema de financiamento do agronegócio como um todo, qual seja o elevado endividamento dos produtores rurais e a consequente indisponibilidade de garantias para dar lastro às operações de crédito.
Diante dessa realidade, a Cédula de Produto Rural (CPR), regida pela Lei 8.929/94, que já vinha sendo largamente utilizada pelo mercado de crédito privado, com as novas regras introduzidas pela Lei do Agro, assume de vez o protagonismo.
A CPR até então era o principal instrumento de formalização de crédito rural privado, ou seja, aquele concedido fora do sistema bancário, por agentes como cooperativas agropecuárias, cerealistas e revendas de insumos agrícolas. O crédito rural no âmbito do sistema bancário, por sua vez, consubstancia-se, usualmente, nas Cédulas de Crédito Rural (CCR), previstas no Decreto-Lei 167/67, bem como na Cédula de Crédito Bancário (CCB), regida pela Lei 10.931/2004.
Dito isso, levando em conta o contexto atual, propomos nesta reflexão analisar a possibilidade da inserção da CPR como garantia acessória aos contratos de financiamento rural no âmbito bancário, com a finalidade de mitigar o risco de crédito e agregar efetividade à garantia.
Tendo em vista o propósito deste ensaio, a nova CPR, quando comparada com a Cédula de Crédito Rural (CCR) e com a Cédula de Crédito Bancário (CCB), a nosso sentir, entrega maior segurança jurídica e efetividade, razão pela qual deve ser melhor aproveitada pelas instituições bancárias financiadoras do agronegócio. Senão, vejamos.
A CPR é um instituto jurídico maduro, com ampla sustentação jurisprudencial, que tem como principais características ser um título de crédito não causal e que admite a emissão para inúmeras finalidades e circunstâncias negociais, dentre elas, como garantia de outros negócios.
Quando analisamos a relação contratual entre financiador e financiado, no que tange à segurança jurídica e risco de crédito, é imprescindível que examinemos as possibilidades e reflexos das garantias que lastreiam tais operações. Em se tratando de crédito rural, em que a moeda do tomador do crédito são os produtos agropecuários, e considerando a realidade de indisponibilidade de patrimônio imobiliário para garantia, inevitavelmente se faz necessário atentar para as modalidades de penhor e alienação fiduciária de bens móveis.
Sabe-se que nos financiamentos bancários instrumentalizados por CCR ou CCB, o mais utilizado vinha sendo a garantia pignoratícia. Contudo, a garantia de alienação fiduciária de produtos agrícolas, quando comparada com o penhor, revela-se mais vantajosa para o credor em dois principais pontos: o primeiro é que a cobrança da dívida se dá de forma mais célere do que aquela garantida por penhor, e o segundo, que os créditos garantidos por alienação fiduciária não se sujeitam à eventual recuperação judicial do produtor rural financiado. Estes dois aspectos tendem a impulsionar as instituições financeiras a adotarem a alienação fiduciária de produtos agropecuários em detrimento do penhor rural. Contudo, tal mudança demanda alguns cuidados.
Num cenário de substituição do penhor rural pela alienação fiduciária, o aspecto preocupante é que a alienação fiduciária de produtos agropecuários guarda certo grau de incerteza quando lançada no contexto exclusivo das Cédulas de Crédito Rural ou da Cédula de Crédito Bancário, seja por óbices normativos seja por aspectos controvertidos na jurisprudência.
Com relação à constituição da garantia de alienação fiduciária em Cédulas de Crédito Rural, trata-se de hipótese sem expressa previsão legal (Decreto-Lei 167/67) e que tampouco encontra terreno seguro na jurisprudência, razão pela qual é bastante incomum sua ocorrência. Ademais, o Manual do Crédito Rural – MCR, no capítulo 2, seção 3, veda a constituição de alienação fiduciária em cédulas de crédito rural, nos seguintes termos:
9 - A alienação fiduciária tem por objeto coisa fungível, bens móveis e imóveis e se constitui por contrato (instrumento público ou particular), sendo inadmissível seu ajuste em cédulas de crédito rural. (Res 3.239; Cta-Circ 3.259)
Por outro lado, na Cédula de Crédito Bancário (CCB), a alienação fiduciária em garantia tem amparo legal expresso, inclusive sobre bens móveis fungíveis e consumíveis, conforme autoriza o artigo 31 da Lei 10.931/2004, que alargou as possibilidades de garantia fiduciária.
Sendo assim, em se tratando de alienação fiduciária constituída em garantia de débito consubstanciado em CCB, parece não haver óbice para a garantia sobre bens móveis fungíveis e consumíveis, o que, em tese, incluiria os produtos agropecuários, embora sem previsão expressa.
Entretanto, há uma fragilidade na alienação fiduciária de produtos rurais em CCB, qual seja a necessidade de individualização e identificação dos bens objeto da garantia, conforme imposição do artigo 33 da lei 10.931/2004.
De fato, em se tratando de produtos agropecuários e de um mercado onde o concurso de credores é a regra, a obrigatoriedade da exata identificação e individualização dos bens é mesmo um complicador que compromete a efetividade da garantia. É inviável identificar e individualizar, por exemplo, determinada quantia de soja de modo a distingui-la de outra quantia idêntica, notadamente porque as commodities agrícolas não possuem nenhum sistema de registro.
Além disso, acerca da CCB, um segundo aspecto que merece atenção é a obrigatoriedade trazida pelo parágrafo 1º do art. 66-B, da lei 4.728/65, que impõe ao credor fiduciário o ônus de provar a identidade dos bens.
Ocorre que, na prática, é imprescindível para a efetividade da garantia fiduciária de produtos agrícolas que os bens afetados possam ser substituídos por outros do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Bem por isso que raramente encontrarmos CCB com alienação fiduciária de produto agropecuário, notadamente comodities agrícolas.
Na Cédula de Produto Rural, contudo, a nova lei cuidou de preencher todas as lacunas e obscuridades que até então pairavam sobre essa desafiadora modalidade de garantia, abrindo e iluminando um caminho seguro para a utilização da alienação fiduciária de produtos agropecuários em sede de CPR. Isso porque, o caput do artigo 8º da Lei da CPR garante a possibilidade de, em caso de não identificação dos bens objeto da alienação fiduciária, substitui-los por outros do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
Além disso, diferentemente da CCB, a nova CPR foi mais longe e passou a admitir expressamente a possibilidade da alienação fiduciária de produtos agropecuários e seus subprodutos, conforme parágrafo 1º do artigo 8º.
Por fim, outro aspecto a ser destacado em favor da CPR é que o pacto de alienação fiduciária lançado em seu contexto é adjeto à obrigação principal de entregar o produto objeto da cédula, que uma vez sendo o mesmo produto objeto da garantia fiduciária, traduz-se num facilitador importante para credor. Isso porque, a nova CPR tem como requisito essencial a indicação do local onde será desenvolvido o produto, bem como o local e condições de sua entrega (art. 3º da lei 8.929/94), e com tais atributos, inegável que o credor terá maior segurança, bem como maior facilidade tanto para monitorar a garantia durante o desenvolvimento do produto quanto para localiza-lo em caso de busca e apreensão.
Diante do exposto, temos que a CPR garantida por alienação fiduciária de produtos agropecuários é a melhor opção para o agente financeiro, pois além de excluir o crédito da recuperação judicial, agrega segurança jurídica e um ganho procedimental importante no momento da cobrança.
Resta saber, por derradeiro, como se valer destes benefícios no atual modelo operacional adotado pelos bancos, onde as operações são instrumentalizadas por Cédulas Rurais ou de Crédito Bancário, normalmente garantidas por penhor rural.
A Cédula de Produto Rural, como destacamos no início, teve sua finalidade jurídica ampliada, caracterizando-se como título abstrato, de modo que sua utilização pode estar associada a inúmeros contextos negociais e pode servir para formalizar ou garantir qualquer tipo de obrigação juridicamente válida.
Não se pode ignorar, é verdade, que no sistema bancário as garantias de bens móveis acabam por ser de difícil liquidação, uma vez que as instituições financeiras geralmente não possuem estrutura operacional para seu acompanhamento e monitoramento, fazendo com que, em um cenário de inadimplemento, as tentativas de excussão restem frustradas. Contudo, atualmente existem ferramentas tecnológicas e serviços especializados acessíveis e que auxiliam os credores nestes processos colaterais de monitoramento e fiscalização.
Nesse sentido, portanto, parece-nos possível e recomendável que, dadas as vantagens aqui apontadas, acessoriamente aos contratos de crédito rural instrumentalizados por CCR ou CCB, seja emitida como garantia adicional, sem prejuízo das outras espécies eventualmente disponíveis, uma Cédula de Produto Rural física e com alienação fiduciária de produto agropecuário, reduzindo o risco de crédito e contribuindo para a estabilização das relações creditícias, fundamentalmente diante da atual realidade patrimonial restritiva dos tomadores de crédito, bem como do novo ambiente jurídico-regulatório.
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